Interior do Duomo de Siena / Foto: Gustavo Alves |
Palazzo Pubblico, na Piazza del Campo, em Siena / Foto: Gustavo Alves" |
Com o ar livre de monóxido de carbono e perfumado pelo cheiro da argila usada na construção da maior parte de seu casario, aumenta a disposição para andar. Pelas ruas tortuosas e de largura variada cercadas de prédios baixos, da época da Renascença. Em volta da Loggia della Mercantia, um prédio erguido sobre arcadas do século XV que ajudou a fomentar a atividade bancária de Siena. Embaixo da estatueta de loba alimentando dois bebês (a estatueta não se extraviou pelo único caminho que não leva a Roma ou coisa parecida; está lá porque o mito da origem de Siena é de que ela foi fundada pelos filhos de Remo, depois de este ter sido morto pelo irmão Rômulo, na disputa de poder pela capital italiana). E, caminhando um pouco mais, chega-se à Piazza del Campo.
Talvez por este contraste, é um nada que convida ao lazer das formas mais simples: os adultos sentam-se no chão para conversar; as crianças correm e jogam bola, vigiadas pelos pais. Os turistas sentam-se nos restaurantes em volta, pedem taças de vinho e petiscos (sim, como na Praça São Marcos, em Veneza, o preço sai mais caro por causa da localização). E olham o vaivém de moradores, que por lá cortam caminho.
Este nada fica cheio de cavalos e gente entre 2 de julho e 16 de agosto, durante a festa do Palio, com suas corridas equestres e participantes vestidos com as roupas à moda medieval, coloridas, com calças colantes, chapéus de penas, mangas bufantes e grandes bandeiras (o nome da festa vem do estandarte dado ao vencedor). Nos meses sem Palio, a melhor maneira de se sentir no passado de Siena é em seus palácios e museus.
Comece pelo circuito básico - aquele dos turistas das segundas-feiras. Depois de admirar a réplica dos relevos feitos por Jacopo della Quercia para a Fonte Gaia, também na piazza, tome a direção contrária e vá ao Palazzo Pubblico, onde está o original da obra. No Museo Civico, admire as pinturas de Simone Martini e de Taddeo di Bartolo, dos séculos XIV e XV. Elas mostram como a escola de pintores de Siena se diferenciou de seus vizinhos florentinos no princípio do Renascimento. Giotto já havia iniciado o movimento que deu mais realismo à pintura, e as obras mostram que ambos não eram alienados disso - têm sim figuras mais próximas da realidade. Mas ainda preservam elementos da pintura gótica e bizantina com muito uso de cores douradas e ornamentos nas roupas dos personagens.
É no palácio também que está a representação pictórica da preocupação que os governantes de Siena tinham em manter a liberdade e prosperidade de sua cidade-Estado, em dois painéis nas paredes, as alegorias do bom e do mau governo, pintadas entre 1388 e 1340. A segunda, embora menos preservada, é mais impressionante, da mesma maneira que o "Inferno" é mais movimentado do que o "Paraíso" na "Divina comédia" de Dante. Principalmente se você leu e se espantou com o relato da selvageria da ditadura de Rafael Trujillo e de seus asseclas na República Dominicana, em "A festa do bode", de Mario Vargas Llosa: o diabo da capa da edição brasileira é o mesmo que preside a cidade malgovernada, com seus dentinhos caninos saindo pelos cantos da boca.
Depois de subir os 505 degraus para apreciar a vista de Siena e dos campos toscanos próximos, do alto da Torre del Mangia (e de dar outra parada na piazza para descansar, porque ninguém é de ferro), dobre à direita, na saída do palácio, e siga para o segundo cartão postal de Siena: o Duomo, construído entre 1136 e 1382. Seu tamanho e faixas pretas e brancas na parte externa e colunas já impressionam, assim como as estátuas e bustos na fachada. Mas olhe onde pisa, ao entrar: o chão de mármore tem desenhos cujos traços grossos delimitando as figuras e sua movimentação dá a impressão de andarmos em cima de uma história em quadrinhos.
Depois, caminhe em volta do púlpito, uma das obras-primas de Nicola Pisano, feita entre 1265 e 1268 com a ajuda de Arnolfo di Cambio, cheia de detalhes, figuras de pessoas e de animais em alto relevo: o efeito é tão poderoso que quase se esquecem as esculturas de Michelangelo de santos na Ala Norte e a capela Chiggi, desenhada por Gianlorenzo Bernini - uma intromissão barroca. Ou a biblioteca Piccolomini, que homenageia o Papa Pio II, nascido em Siena, com seu teto decorado com padrões geométricos e livros de cantos religiosos medievais que expõem os primórdios da partitura como nós a conhecemos hoje, quando os pontos pretos nas linhas serviam apenas para indicar ênfase em trechos da prece (a música religiosa medieval era apenas base para um discurso falado com alguma melodia - mais ou menos como no rap e no hip hop).
Com tanto para se ver, não é à toa que a turma das segundas-feiras fique neste roteiro básico - embora bastante exuberante. Mas não é para parar nele: quando a noite cai, é o momento de ir buscar um dos bons restaurantes de Siena, entre o Duomo e a Piazza del Campo. Ou seguir um pouco mais adiante e comer como um senês do século XVI. Um circuito que faremos a seguir, antes de ir para as surpresinhas que há para quem fica em Siena.
Uma crença infundada fez Siena ficar em cima do maior filtro de barro do mundo. Os seneses acreditavam, na Idade Média, que um rio subterrâneo corria por baixo do monte onde está a cidade - o que era crucial para garantir o abastecimento, em caso de cercos militares e na produção de tecidos.
Razões mais do que suficientes para que eles se pusessem a escavar o monte em busca do rio. Nunca acharam. Mas criaram túneis e canais subterrâneos que, além de fornecer a matéria-prima para a construção das casas e da pavimentação de suas ruas, ajudava a purificar a água da chuva que penetrava no solo argiloso - eis o filtro gigante.
Graças a isso, os seneses construíram um sistema de fontes, cada uma dedicada a uma função: para lavar os tecidos, para as pessoas se abastecerem ou para os animais beberem. Ai de quem trocasse uma por outra. Há relatos de pessoas chicoteadas e até condenadas à morte por terem deixado seus animais beberem na fonte reservada aos humanos.
Hoje, você pode descer Siena por dentro do morro, graças a estes canais, a partir do complexo de museus de Santa Maria della Scalla. E fazer um tour nas fontes promovido pela Associazione de La Diana, que cuida do patrimônio histórico ligado à distribuição de água de Siena (agende com antecedência no site www.ladianasiena.it ).
Por mais que a Piazza del Campo seduza, evite os restaurantes à sua volta, na hora de jantar. Não só por serem mais caros. Mas porque você come melhor em lugares próximos. Dois deles são quase vizinhos. O San Desiderio fica onde era igreja do início do século XI. Serve um cardápio baseado em produtos da estação que, por isso, pode ou não incluir trufas e cogumelos. O que você encontra com certeza é uma suculenta e grossa bisteca que é item obrigatório da culinária toscana. Acha o prato muito pesado e quer evitar pesadelos? Aposte nos pescados, estão sempre frescos.
A alguns passos do San Desiderio está a Cava dè Noveschi. Nela, o recomendável é pedir pratos leves, como uma de suas saladas ou uma combinação de queijos, e experimentar a carta de vinhos e de 80 marcas de espumantes: o perigo é sair de lá tão torto quanto o trajeto das ruelas à frente.
As ruazinhas tortas e escuras (mas muito seguras) e quase vazias, a não ser pelos estudantes da universidade local e outros turistas que resolveram pernoitar na cidade, dão um clima de volta ao passado na noite. Mas se você quer sentir isso na boca, entre na Osteria Babazuf, um pouco mais afastada. Não se deixe enganar pela placa de entrada do restaurante, um desenho modernoso de formas geométricas básicas formando um rosto: a principal atração da casa é retornar ao século XVI.
A osteria recupera receitas daquele século e do seguinte. Tem sucesso na arqueologia culinária, a partir da sopa de cogumelos de caldo grosso servida como primeiro prato, ou na carne de porco que leva 16 horas para ser preparada. O bolinho com recheio de creme servido de sobremesa merece ser considerado uma obra-prima do renascimento tanto quanto o "David" de Michelangelo - foi criada na mesma época. Termine-a com um copinho de vin santo. Que é para comer, não para beber: ele vem acompanhado de biscoitos crocantes e duros que devem ser mergulhados no vinho de sobremesa, quando ficam mais macios, mas continuam crocantes e deliciosos. O preço fica por volta de 60 euros para dois - nada caro, especialmente com a cotação declinante da moeda.
Com o sono garantido por alguma destas refeições, no dia seguinte, continue explorando Siena para o alto e para baixo. Para o alto, volte à área do Duomo: não para a igreja, novamente, mas para o Museo dell'Opera del Duomo, que tem obras como a "Maestá", uma das principais de Duccio, o pintor que é para Siena o que Giotto foi para Florença em relação às artes - um herói local e uma ponte entre a arte bizantina e gótica e os novos tempos do realismo e da adoção da perspectiva renascentista.
O museu não é só para conhecer obras de arte (mas se fosse, seria o suficiente). Suba por uma escada um pouco apertada até uma passagem no alto do que seria a fachada da expansão da igreja, que foi planejada, mas nunca concretizada: de lá, você tem outra vista do Duomo, da cidade e, mais ao longe, dos campos toscanos que nos dão tanto prazer de contemplar quanto as obras de Quercia, Pisano e Donatello na sala de estátuas do prédio.
Quase ao lado, está o complexo de museus de Santa Maria della Scalla. Outras pinturas e estátuas o esperam. Mas o complexo tem a atração adicional do Museu Arqueológico, com peças da época em que os etruscos habitavam a região, e ao qual se chega entrando pelos túneis subterrâneos escavados no monte onde foi erigida Siena.
Descer e subir o morro não é tão exaustivo assim. Mas se você ficou em Siena, é porque não está com pressa. E pode (ou não) deixar para mais tarde, ou para o dia seguinte, para passear pelos lugares mais distantes (em termos seneses) do Duomo e da piazza. Deixando para trás a praça, chega-se à Pinacoteca, onde encontramos mais trabalhos da escola dos pintores de Siena, como Duccio e Simone Marini. Madonas e santos cercados de dourado, envolvidos por roupas com cores fortes e cenas que não seguem as regras da perspectiva. A preocupação não era competir com a natureza, mas fazer bonito. E eles faziam.
O contato com a natureza está um pouco mais adiante, no Jardim Botânico, quase escondido nos domínios da Universitá degli Studi de Siena. É um pequeno e bem ornamentado jardim com flores, árvores e arbustos: um refúgio verde no meio do casario ocre.
A noite chega, igrejas e museus fecham - é hora de visitar a loja do Consorzio Agrario de Siena, que vende massas, embutidos, queijos e vinhos fabricados pelos agricultores da região. Depois disso, você pode jantar ou esticar a noite em um dos bares que ficam dentro dos muros da área histórica - o Porrione tem decoração e música moderninhas que fazem você esquecer que está quase ao lado da Piazza del Campo.
O dia seguinte pode ser dedicado a uma atração um tanto macabra, mesmo para quem é católico: na enorme igreja de San Domenico, está a cabeça preservada de Santa Catarina de Siena. Ela é a padroeira da cidade, onde também nasceu São Bernardino, uma peculiar exceção entre os sábios da igreja que condenaram de tempos em tempos o lucro - para o santo, a livre iniciativa e o empresário eram instrumentos de Deus. Com sua tradição bancária, Siena se orgulha dele, tanto quanto de Sallustio Bandini, pensador humanista que, dizem os seneses, foi um defensor das virtudes das leis do mercado muito antes de Adam Smith dar as caras na ciência econômica. Uma estátua o homenageia em frente à sede do banco Monte dei Paschi, e, pelo tamanho do pedestal e iluminação noturna, chama a atenção dos passantes. Cansou deste neoliberalismo todo? Vá à praça Antonio Gramsci. É do logradouro que homenageia o pensador marxista que partem os ônibus para San Gimignano - uma cidade que pode ser percorrida em um dia, e um bom prolongamento de sua estada em Siena.
Quem gosta de bancar o psicanalista de botequim e identificar símbolos fálicos não vai ter muito trabalho em enxergá-los em San Gimignano. A paisagem da cidade, também encravada em um monte, é caracterizada por 13 torres, construídas nos séculos XII e XIII para mostrar isso mesmo que você está pensando: o poder das famílias ricas que as erigiram. Estão todas fechadas à visitação, com exceção de uma, chamada de Torre Grossa. Freud não explica.
O acesso à Torre Grossa é pelo Museo Civico, na Piazza del Duomo, que concentra as principais atrações de San Gimignano que não sejam torres. A exceção é a igreja de Sant'Agostino, um prédio mais distante, cuja simplicidade exterior, de tijolos vermelhos, abriga obras-primas de Pollaiuolo e Benozzo Gozzoli no interior.
Museo Nazionale del Bargello
Este Palazzo del Podestà, como era originalmente chamado, é o mais antigo edifício público, em Florença. O Bargello , também conhecido como o Palácio Bargello ou Palazzo del Popolo (Palácio do Povo) é um antigo quartel e prisão, agora um museu de arte em Florença , Itália.
No museu, as paredes são decoradas com cenas de caça e uma (de novo) "Maestá" (de Lippo Memmi, cunhado de Simone Martini). A Sala di Dante lembra a visita do autor da "Divina comédia" à cidade em 1300, para negociar a resistência dos toscanos ao Papa Bonifácio VIII e seus aliados. Missão diplomática que foi uma das razões para Dante Alighieri morrer no exílio, quando seus adversários tomaram Florença.
Há pinturas de mestres do Renascimento, como Fillipino Lippi, Pinturicchio e Benozzo Gozzoli. Sua beleza é o principal chamariz. No caso dos afrescos com duas cenas de um casamento de Memmo di Filipucci, feitos no início do século XII, o que atrai é a falta de cerimônia: o casal é mostrado dividindo uma banheira e uma cama, em que o pano que pende do dossel é levantado pelo criado, em uma intimidade exposta que surpreende até quem acompanha o "Big Brother" no pay-per-view.
Ainda na praça, continue admirando afrescos, mas na Colegiatta, uma igreja do século XII, em estilo românico. Nas suas paredes internas, há uma "Anunciação" de Ghirlandaio, cenas da vida de Cristo por Lippo Memmi, e de histórias do Antigo Testamento, por Bartolo de Fredi.
Chega de parede pintada: passe para as que não têm nenhuma figura, somente a cor entre o amarelo e o marrom do exterior das casas de San Gimignano. Elas mudam de tom de acordo com a incidência da luz do Sol e ganham uma beleza que dispensam afrescos - a Itália é um país onde você pode ficar olhando para as paredes sem ser considerado maluco.
Passeando pelas ruelas de San Gimignano, evite as lojinhas de bugigangas na entrada da cidade. E faça uma parada para admirar a movimentação dos moradores e outros turistas em torno da Piazza della Cisterna, com seu poço - ou melhor, cisterna - cercado de degraus: não é a Piazza del Campo de Siena, mas também é um bom lugar para se sentar, antes de se decidir onde comer.
Numa cidade cujo tamanho diminuto (apesar das torres) inspira a proximidade com os moradores, experimente o pequeno e informal Taverna Paradiso, onde uma refeição para dois sai barata (por volta de 40 euros, com dois pratos, sobremesa e vinho) e temperada com o sorriso e um bate-papo com a atendente, se você fala italiano ou inglês. Depois, é hora de voltar para Siena - a essa altura, uma cidade maior do que parece em apenas uma segunda-feira.
COMO CHEGAR
De trem: Diariamente, saem composições de Florença para Siena. Horários em www.trenitalia.com .
De carro: A viagem a partir de Florença leva 1h30m, em uma autoestrada com pedágio.
ONDE FICAR:
Grand Hotel Continental: Único cinco estrelas de Siena. Diárias a partir de 320 euros. Via Banchi di Sopra 85. Tel (057) 756-011. www.royaldemeure.com
Athena: Quatro estrelas. Diárias a partir de 95 euros. Via P. Mascagni 55. Tel. (057) 728-0462. www.hotelathena.com
Chiusarelli: Um dos mais antigos de Siena. Tarifas a partir de 71 euros. Viale Curtatone 15. Tel. (057) 728-0562. www.chiusarelli.com
PASSEIOS
SIENA
Palazzo Pubblico: Aberto diariamente das 10h às 19h. Ingresso combinado para museu e torre: 12 euros. Apenas para o museu: 7,50 euros. Piazza del Campo 1. Tel. (057) 729-2614.
Duomo: De segunda-feira a sábado, das 10h30m às 20h. Entrada: 3 euros. Ingresso combinado com museu, batistério, cripta e fachada do Duomo Novo: 10 euros. Tel. (057) 728-3048. Piazza del Duomo. www.operaduomo.siena.it
Pinacoteca Nazionale: De terça-feira a sábado, das 8h15m às 19h15m. Segundas-feiras e domingos, das 9h às 13h. Entrada: 4 euros. Via San Pietro 29. Tel. (057) 728-1161.
Santa Maria della Scala: Diariamente, das 10h30m às 18h30m. Ingresso: 6 euros. Bilhete combinado para o Museu dell'Opera del Duomo, Museo Civico e o Battisterio San Giovanni: 14 euros. Piazza Duomo, 2. Tel. (057) 753-4511. www.santamariadellascala.com
Jardim Botânico: De segunda a sexta-feira, de 8h às 17h30m. Sábados, de 8h às 12h. Grátis. Via P.A. Mattioli 4.
SAN GIMIGNANO
Museo Civico: Diariamente das 9h30m às 19h. Admissão: 5 euros. Palazzo del Popolo, Piazza del Duomo. Tel. (057) 799-0312.
Collegiatta: Diariamente das 9h30m às 17h. Entrada: 3,50 euros. Piazza del Duomo.
ONDE COMER
SIENA
San Desiderio: Piazzetta Luigi Bonelli 2. Tel. (057) 728-6091. www.ristorantesandesiderio.com
Cava dè Noveschi: Via Monna Agnese 10. Tel. (057) 727-4878. www.cavadenoeschi.it
Osteria Babazuf: Via Pantaneto 85/87. Tel. (057) 722-2482. www.osteriababazuf.com
Porrione: Via del Porrione 14. Tel. (057) 728-1118.
SAN GIMIGNANO
Taverna Paradiso: Via San Giovanni 6. Tel. (057) 794-0302.
COMPRAS
Consorzio Agrario di Siena: Via Pianigiani 5, Siena. Tel. (057) 723-0223. www.capsi.it
O Globo - Gustavo Alves
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