CÁCERES - Ninhos de cegonhas, vinhos caseiros, laranjeiras nas calçadas, queijos e presuntos especiais, castelos medievais, ruínas romanas e uma só religião: a siesta. Assim é a Extremadura, uma das regiões menos conhecidas da Espanha. Praticamente no meio do caminho entre Madri e a fronteira com Portugal, a junta - composta pelas províncias de Cáceres e Badajoz, e na qual vivem pouco mais de um milhão de habitantes (num território do tamanho da Suíça) - preserva um clima provinciano que outros centros turísticos do país perderam há tempos. Não há multidões aglomeradas em frente aos cartões-postais, que não são poucos.
Basta conhecer as cidadelas muradas de Cáceres e Trujillo, que parecem imunes aos efeitos do tempo. Ou Mérida, onde o passado romano brota no chão com uma facilidade única fora da Itália. E, claro, a comarca de La Vera, escolhida por um imperador que nunca havia pisado na Espanha como sua última residência. Sinal que a tranquilidade extremenha faz sucesso há séculos.
Monumental é a palavra normalmente usada para descrever Cáceres, capital da província do mesmo nome e segunda maior cidade da Extremadura. Não sem motivo. A cidade tem um dos centros antigos mais bem preservados do país e, quem sabe, do continente. Por trás de uma muralha erguida primeiro pelos romanos, fortificada pelos árabes e ampliada pelos cristãos, fortalezas, casarões, palácios e igrejas vêm os séculos passarem sem perder a imponência de seus melhores dias. Por isso é considerada, desde 1968, um Conjunto Monumental Europeu, e desde 1986, Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
A nota ruim para quem pretende visitar a cidade nos próximos meses é o atual estado da Plaza Mayor, fundamental para se ter a visão frontal da entrada da cidade murada. Por causa da (já fracassada) candidatura para ser a Cidade Europeia da Cultura em 2016, a prefeitura iniciou uma reforma geral na praça, que há meses se transformou num canteiro de obra cercado por tapumes.
Fundada pelos romanos em 34 a.C. com o nome de Norba Caesarina, caiu em decadência após ser tomada pelos visigodos. Só voltou a ter importância no século XI, com a ocupação dos muçulmanos, que reconstruíram as muralhas (de pé até hoje) sobre as fundações romanas, e as torres de Bujaco e Yerba, as principais sentinelas na entrada da cidade. Após um século de lutas entre cristãos e muçulmanos, foi reconquistada pelo rei Afonso IX no dia 23 de abril de 1229.
Cáceres também se envolveu em crises políticas posteriores. Sua nobreza era forte opositora de Isabel de Castela, que, após assumir a coroa, mandou cortar as torres de todas as casas-fortalezas da cidade. Menos a do Palácio das Cegonhas, cujo dono era seu único partidário. Já durante a Guerra Civil, foi duramente bombardeada pelas forças franquistas.
Um dia é o suficiente para percorrer com calma o centro medieval da cidade e entrar em seus museus. Para recarregar as energias e descansar as pernas, o Restaurante Racó de Sanguino é uma boa opção. Os destaques do cardápio são o bacalhau (muito consumido na região, pela proximidade com Portugal) e os cortes de carne de porco.
Fica na Plaza de las Veletas, um dos pontos centrais da cidade antiga. Lá está o Palácio das Cegonhas e o das Veletas, atual Museu de Cáceres. Esta construção, erguida no século XV sobre a estrutura de uma fortaleza árabe, guarda uma rica exposição sobre a história da região, com quadros, roupas, maquetes e utensílios. Mas seu destaque fica no subsolo: é o aljibe, um depósito árabe de água com cerca de mil anos, ainda em perfeito estado de conservação.
De lá se chega também ao bairro judeu da antiga Cáceres, colado a uma das muralhas. Com casas pequenas e muito mais humildes que os casarões fortificados de pedra, o bairro é até hoje área residencial, o que lhe confere um charme especial. Ali funciona o escondido Centro Turístico Baluarte de los Pozos, numa das torres de observação, que oferece uma das melhores vistas das muralhas.
Para quem aprecia igrejas, Cáceres é um prato cheio. A igreja de San Mateo, por exemplo, foi construída sobre ruínas de uma mesquita entre os séculos XVIII e XIX. A igreja de San Francisco Javier (na Plaza San Jorge) chama atenção por suas torres brancas, fugindo do tom marrom dominante na paisagem geral. E uma visita à impressionante Concatedral de Santa Maria, do século XVI, é também obrigatória.
Quando o sol se põe, Cáceres fica ainda mais bonita. Caminhar pelas vielas e praças da cidade murada à noite é um programa relaxante, se não estiver muito frio. Há iluminação todos os dias da semana, mas ela é especial nas noites de sextas-feiras e sábados, quando se ressaltam as principais fachadas.
Para quem quiser movimentação, perto do centro histórico há também grande concentração de bares e restaurantes. Uma das ruas mais agitadas é a pequena Calle de Sergio Sanchez, que reúne bares alternativos e despojados, dignos de uma cidade universitária como Cáceres, aos mais sofisticados, com tapas e drinques mais elaborados. A rua começa na Calle Pizarro, que também conta com grande número de bares. Mas o que se destaca fica abaixo do nível da rua. É o La Caballeriza, no andar inferior do Hotel Albarragena.
Como o nome já diz, o bar ocupa o espaço usado pelas cavalariças deste casarão do século XVIII. O acesso é feito por uma discreta escadaria, que, a princípio, parece uma passagem de nível. Ao final dela, há uma área ao ar livre, muito concorrida no verão, e um salão, que aproveita a estrutura original do prédio, com teto abobadado e ainda as baias onde ficavam os animais.
Fora da cidade também há o que apreciar. Vale visitar Malpartida de Cáceres, a 14 quilômetros do centro histórico, onde estão o Museo Vostell-Malpartida e o Monumento Natural de los Barruecos. Criado nos anos 1970 pelo artista plástico alemão Wolf Vostell, o museu funciona numa antiga estação de lavagem de lã. A construção, do século XVIII, fica às margens de uma represa cercada por gigantescos blocos graníticos, o que dá um contraste interessante entre a bucólica paisagem exterior e o interior, recheado com as questionadoras obras de Vostell.
Um dos fundadores do movimento Fluxus, caracterizado pela mescla de expressões artísticas, como artes plásticas e vídeo, por exemplo, e pelo uso de objetos cotidianos, Vostell encheu o antigo galpão com Cadillacs destruídos, videoinstalações, e obras feitas com motocicletas e televisores. Num prédio anexo, há mais obras do movimento Fluxus de outros artistas, entre os quais Yoko Ono.
Mitos e histórias em La Vera, na rota do imperador Carlos V
Se Cáceres é uma cidade grande com um centro histórico, a comarca de La Vera é um combinado de pequenos vilarejos cheios de histórias para contar. A mais importante e conhecida delas é a de um imperador que nunca havia pisado na Espanha e que escolheu o norte da Extremadura para passar seus últimos dias de vida.
Neto dos Reis Católicos e da dinastia dos Habsburgo, Carlos V (ou Carlos I, para os espanhóis) unificou sob a mesma coroa o Sacro Império Romano Germânico e a Espanha durante a primeira metade do século XVI. Após abdicar o trono em 1555, escolheu o monastério de Cuacos de Yuste para passar seus últimos anos. Seu trajeto pelo norte extremenho ficou conhecido como "rota imperial" e é refeito anualmente por peregrinos.
Sua primeira parada na região foi no palácio dos condes de Oropresa, em Jarandilla de La Vera, onde se hospedou por dois meses até a conclusão das obras de adaptação do monastério de Yuste. Atualmente, o palácio é o Parador Nacional Carlos V, da rede hoteleira Paradores de Espanha.
A poucos quilômetros está o monastério de Cuacos de Yuste, hoje um museu sobre o imperador, que morreu ali, em setembro de 1558, de malária. Além de quadros, bustos e brasões relativos ao monarca e sua família, estão expostos também uma réplica da liteira na qual ele fez a travessia de sete semanas entre a Cantábria e a Extremadura e o quarto imperial com um acesso direto ao altar do monastério: Carlos V podia assistir a missas deitado em sua cama.
Entre as duas cidades fica Garganta la Olla, um vilarejo parado no tempo, num bucólico vale. Na entrada da cidade, uma estátua da Serrana de la Vera, uma mulher que, segundo as lendas locais, vivia pelas montanhas da região seduzindo e matando homens.
Com a chegada de Carlos V, a cidade passou a abrigar seus soldados e funcionários. Caminhando por suas ruas estreitas, é possível encontrar casas com a inscrição "Ave Maria Puríssima", que indica que ali morava uma família judia expulsa pela Igreja Católica.
Ou então casas azuis com bonecas talhadas na fachada. Eram os antigos prostíbulos, conhecidos como "Casas das bonecas", que tinham janelas mais altas, para que os homens que chegavam pudessem observar as mulheres sem desmontar dos cavalos.
Plasencia, a capital informal do norte da Extremadura
Espécie de capital informal da região norte da Extremadura, Plasencia foi fundada no século XII e é a única cidade entre as principais da região que nunca foi ocupada por romanos ou muçulmanos. Ponto estratégico importantíssimo durante a Reconquista, hoje funciona como centro dos pequenos povoados rurais da área.
Por isso mesmo o melhor dia para visitar a cidade é na terça-feira, quando acontece uma feira na Plaza Mayor com produtores de toda a região. Ótimo momento para comprar o famoso pimentón (pimenta vermelha em pó, onipresente na gastronomia local), entre outros produtos.
Mas a atração principal da praça é o Abuelo Mayorga, boneco que, desde os anos 1960, martela o sino da prefeitura a cada hora. Ainda na Plaza Mayor, aproveite para conhecer o La Pitarra del Gordo, um dos mais tradicionais da cidade. Com inúmeros pedaços de jamón e pimenteiras pendurados no teto e seu tradicional vinho de pitarra, o lugar parece uma taberna medieval, mas vale a pena.
Já a decoração do Succo, resto-bar relativamente novo, é oposta. Ambiente clean, música suave e tapas elaboradas com os ingredientes da região, como a de torta de Casar ou o zorongollo (pimenta assada, cebola, atum e laranja).
A Catedral de Plasencia também merece uma visita, nem que seja apenas para ver o lado de fora. A parte antiga, gótica, erguida entre os séculos XIII e XIV, deveria ter sido substituída por uma nova, que começou a ser construída em 1498 e nunca foi concluída. Em 1558, com a morte de Carlos V, a ala "moderna" foi inaugurada às pressas e o que se vê hoje é o resultado dessas duas catedrais misturadas.
Queijo de Casar e pata negra
Como todo espanhol, os naturais da Extremadura têm o orgulho como traço marcante de personalidade. E boa parte se deve aos produtos locais que dão cara e sabor próprios à gastronomia da região. Nesse sentido, a principal bandeira dos extremenhos é a torta del Casar. Não é um bolo, muito menos para casamento. Originário do povoado Casar de Cáceres, a poucos quilômetros de Cáceres, trata-se de um queijo feito com leite de ovelha não-pasteurizado. Sua textura é cremosa e o sabor, muito forte. Lembra o queijo de cabra convencional, mas um pouco mais amargo. É usado em entradas, saladas, pratos principais e sobremesas. E, sim, é chamado de torta porque o formato parece o de um pequeno bolo arredondado.
Ir à Extremadura e não provar o queijo de Casar só é um pecado comparável a estar lá e não degustar um jamón ibérico de bellota. A mais nobre classe de pata negra tem na região sua principal área produtora. Cerca de 80% do jamón de bellota do país sai dos vastos campos extremenhos.
Bellota (ou bolota, para os portugueses) é o fruto das árvores da família do carvalho, uma castanha parecida com as que os esquilos dos desenhos animados adoram. Para que sua carne chegue ao nível de perfeição, os porcos pretos, típicos do oeste espanhol, passam os últimos meses de vida ao ar livre, se alimentando do pasto, de raízes e desses frutinhos.
Como acompanhamento para as finas fatias de presunto cinco estrelas os vinhos da Extremadura não fazem feio. Sem ainda chegarem perto do prestígio da produção de La Rioja, os extremenhos vêm se qualificando ao longo dos anos e vale a pena dar um voto de confiança a eles. Para os apreciadores de espumantes, há também cavas locais.
Mas se a ideia for provar a bebida realmente típica da região, peça um vinho de pitarra. Feita de forma artesanal, a bebida é vendida em bares e mercearias de Cáceres e até dos menores vilarejos. Pitarra é como são chamados os tonéis de barro onde o vinho fica depositado para fermentar. O resultado é uma bebida forte e seca, usada como aperitivo ou digestivo, mas muito popular também nos bares de tapas. Nada melhor para conhecer o verdadeiro sabor da desconhecida Extremadura.
ONDE FICAR
Albarragena: A diária do quarto duplo fica em 90 euros. Calle Pizarro 10, em Cáceres. Tel. (34) 927 22 06 57. www.albarragena.com
Hotel Rural Ruta Imperial: Diária de quarto duplo com café da manhã a partir de 70 euros. Machoteral s/n, em La Vera. Tel. (34) 927 56 13 30. web.hotelruralrutaimperial.com
Parador de Plasencia: Plaza San Vicente Ferrer s/n. Tel. (34) 927 42 58 70. Diária de quarto duplo a partir de 90 euros. www.paradores.es
COMER E BEBER
CÁCERES
Casa Mijhaeli: Calle Barrio Nuevo 6. Tel. (34) 927 243 260. www.casamijhaeli.es
Restaurante Racó de Sanguino: Plaza de las Veletas 4. Tel. (34) 927 227 682. caceres.portaldetuciudad.com
La Caballeriza: Calle Pizarro 10, Cáceres. Tel. (34) 927 22 06 57. www.albarragena.com
PLASENCIA
La Pitarra del Gordo: Marques de Ceballos 3. Tel. (34) 927 422 969. www.lapitarradelgordo.com
Succo: Calle Vidrieras 7. Tel. (34) 927 412 932. www.restaurantesucco.es
PASSEIOS
CÁCERES
Concatedral de Santa María: A entrada custa 1 euro. Plaza Santa María s/n. Tel. (34) 927 215 313.
Centro Turístico Baluarte de los Pozos: A entrada é gratuita. Calle Barrio de San Antonio 17. Tel. (34) 927 226 044.
Museu de Cáceres: A entrada custa 1,20 euros. Plaza de las Veletas 1. Tel. (34) 927010877. museo caceres@juntaextremadura.net
LA VERA
Monastério de Yuste: A entrada custa 2,50 euros. Informações em www.patrimonionacional.es/Home/Monasterios-y-Conventos/Monasterio-de-Yuste.aspx
PLASENCIA
Catedral: A parte nova abre todos os dias a partir das 9h. A entrada é gratuita. Já a parte velha abre de segunda-feira a sábado a partir das 9h. Entrada custa 1,50 euros. Informações em www.plasencia.es .
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